Refletindo sobre questões de gênero dentro do secretariado: inquietações
Uinverso, por Nadiuska e Priscila Furtado |
Durante
muito tempo, escolhemos não tocar em algumas questões bem polêmicas ligadas ao
nosso exercício profissional. Penso que isso seja uma questão histórica mesmo,
talvez até cultural, evitamos como sociedade brasileira falar da época de
escravidão no Brasil, não nos sentimos confortáveis ao falar do genocídio da
população indígena, bem como da juventude negra das periferias, falar sobre
ditadura “é pesado demais”, logo evitamos também. Já o machismo, a misoginia e
o sexismo são pautas que ainda teimamos em não tocar. São assuntos que
incomodam, isso porque não conseguimos conceber que cenários de violência
existiram e mataram muitos. Existiram, e não podemos mudar o passado. Podemos
mudar o futuro, mas para isso é importante que tenhamos consciência histórica,
não dá para ignorar tudo que já aconteceu e achar que isso não influenciou na
sociedade que temos hoje, chega a beirar a desumanidade acreditar nisso.
Pensar
em secretariado é pensar em uma profissão exercida majoritariamente, por
mulheres. Temos visto hoje um movimento forte de inserção do sexo masculino na
profissão, todavia ainda não temos um cenário em que a quantidade de homens
seja a mesma de mulheres. O que isso representa para nós, de modo direto?
Representa
que não podemos ignorar o machismo e o sexismo presentes em nossa sociedade que
influenciam, diretamente, na construção e manutenção de alguns paradigmas
destinados à profissão. Falar de feminismo dentro do secretariado não é “mimimi”,
é buscar as mesmas oportunidades para homens e mulheres, é lutar por salários
dignos, é lutar pela quebra de paradigmas negativos, é lutar pela equidade de
gênero. O fato de eu conhecer cerca de cinco profissionais de secretariado, do
sexo masculino, e todos ocuparem a gestão (conseguiram promoções em seus
trabalhos) e conhecer muitas secretárias que estão anos e anos atuando somente
como secretária, é extremamente, sintomático. A amostragem é pequena, mas é
representativa. Das secretárias mulheres que conheço, e são muitas dezenas,
somente uma atua na gestão da empresa, com cargo de gestão. Como que as outras
também não conseguem? A resposta é simples, porque ainda sofremos com uma série
de preconceitos sociais e um deles é que as mulheres não têm estabilidade
emocional para ocuparem um cargo de alta gestão. Você deve estar chocada/o agora
com essa minha colocação, é essa a ideia.
O sexo
feminino foi visto durante muito tempo como inferior, como propriedade, como a
calda, como a parceira, como a coadjuvante, a passiva, a secundária, a sem
direitos e não mais que isso. Somente no fim do século XIX e início do século
XX é que vamos perceber um movimento maior na luta pelos direitos das mulheres.
Você é capaz de conceber que até 1962 as mulheres só podiam trabalhar se o
marido autorizasse? É o que constava no Código Civil de 1916. “Também até bem pouco tempo não era considerado
juridicamente possível que houvesse estupro entre cônjuges e assassinato por
honra era algo aceitável” (TOSI, Marcela. Direitos da mulher: avanços e retrocessos na
legislação e políticas públicas. Disponível
em: http://www.politize.com.br/direitos-da-mulher-avancos-e-retrocessos/). Quando essas começaram a trabalhar, eram
em empregos onde o servir estava mais aflorado: passadeiras, domésticas,
faxineiras, cozinheiras, cuidadoras e, posteriormente, professoras, enfermeiras
e secretárias. Existe uma série de textos que relatam isso que pontuo aqui, por
sinal listarei alguns nas referências. Isso se deu pelo fato das mulheres não
terem acesso à educação profissional nos séculos passados, logo o que dominavam
era o servido doméstico, o que as aproximou a esses exercícios profissionais. Em
relação ao secretariado, é importante levantarmos as atividades que exercíamos no
início do século passado: atendimento telefônico (nas empresas que tinham),
recepção de pessoas, organização de reuniões e da agenda do executivo,
organização do escritório e sim, servir o café se fosse necessário. Isso faz
parte do nosso passado. Para esse exercício profissional não era cobrada formação
específica, mas sim boa vontade de aprender e desenvoltura. Com o passar dos
anos as coisas foram mudando e hoje temos a/o profissional de secretariado
dominando muitas outras habilidades, desenvolvidas por meio de cursos de
formação específicos. Alguns/as empresários/as de agora ainda não entenderam
que as funções mudaram.
Veja bem, somente em 1932 as mulheres
passam a ter direito ao voto no nosso país (na Arábia Saudita, somente em 2015)
e até 1981 as mulheres não podiam jogar futebol no Brasil e vamos ter a nossa
primeira senadora somente em 1990, a senhora Júnia Marise. Seria ilusão nossa
achar que tudo mudou, algumas questões ainda permeiam nossa sociedade, nossos
discursos e nossas práticas. Além disso, vale dizer que o primeiro curso de
secretariado só foi criado no Brasil em 1969, na Universidade Federal da Bahia.
Há um caminho longo entre o início da profissão de secretariado até chegar ao
seu primeiro curso superior.
Se muitas piadas de mal gosto ainda
nos são lançadas é por causa dos machismo e sexismo presentes em nossa sociedade,
não é só uma falta de conhecimento. Machismo é aquela relação de poder em que a
mulher é inferiorizada, vista como menos em relação ao homem, onde os direitos
iguais para ambos são negados. Sexismo é quando eu imponho o que é ser homem e
o que é ser mulher, o que caracterizam os grupos, além de criar limites e
barreiras entre eles. Se hoje temos uma profissão que não é tão atrativa para o
sexo masculino, todavia se esse opta por ela acaba conseguindo promoções mais
rápidas, e que não há uma valorização do trabalho desenvolvido pelas
secretárias, isso está diretamente, ligado ao machismo.
Hoje as mulheres já
conquistaram muitos direitos, todavia existem direitos básicos que ainda
precisam amadurecer, como por exemplo o respeito ao corpo feminino, o respeito
à moral da mulher e a inviolabilidade do espaço dela. Quantos relatos já ouvi
de amigas que foram assediadas em seus trabalhos. Algumas pessoas dizem que
isso acontece porque elas não tomam uma postura profissional no trabalho, não
podemos limitar essa questão a isso. Não podemos velar esse problema, para não
cairmos no erro de auxiliar na manutenção dessas práticas.
Gostaria de comentar um exemplo
bem nítido de como o machismo está internalizado em nossos discursos que às
vezes nem percebemos. No Congresso Internacional de Secretariado, realizado em
São Paulo, em 2017, ouvi uma fala de um colega secretário que me fez refletir
muito, “não estamos aqui para tomar o trabalho de vocês, mas para ajudar”. Essa
fala não veio junta de um tom impositivo, pelo contrário, veio em um tom manso
de respeito e de oferta de ajuda. Mas aí eu pergunto: as secretárias precisam
dessa ajuda? Uma secretária não é tão boa quanto um secretário? Se a profissão
sobreviveu ao século passado e conseguiu vários avanços não foram por causa da
luta dessas secretárias? Quem foi que lutou pela lei de regulamentação? Pelo
Código de Ética? Elas precisam mesmo de ajuda? Acho que não. O secretariado
precisa de pessoas juntas para ajudar no seu fortalecimento e na quebra de
paradigmas, ponto.
Não proponho nesse texto um
feminismo secretarial, o que também não anula se caso vejam como viável, o que
proponho é que não ignoremos essas questões quando formos falar da profissão,
quando formos flexionar o gênero em nossas falas e quando formos representar o
secretariado. Não somos só secretárias, como também não somos só os
profissionais de secretariado, somos as e os profissionais de secretariado.
Coloco o as antes, pois é o que representa a maioria. É bem simples: tem um
auditório cheio de mulheres e dois homens, cumprimente com boa tarde a todas e
a todos, assim represento o grupo, sem ignorar a existência dele. Aí vem uma
outra questão: a machismo linguístico na língua portuguesa. Tema tão amplo que
posso trazer para vocês em um futuro, tendo em visto que não conseguirei
abordar de modo mais elaborado hoje.
Concluindo, sem finalizar,
proponho que busquemos a equidade e igualdade de gênero em nossa sociedade e
dentro do secretariado. Somos mais secretárias que secretários, então vamos
listar assim. Não há porque flexionar o gênero para o masculino, de modo que
homens se sintam incluídos, e deixar a representação nominal não ser coerente
com a realidade profissional. Flexionamos para ambos, quando formos falar deles/as
precisamos representar os dois, não só um, assim evitamos esquecer um ou
exaltar outro.
Obrigado pela visita e te
aguardo na próxima sexta-feira.
uma delícia teus textos
ResponderExcluirmesmo não sendo da minha área, percebo a pertinência de todas as colocações
bjs
Excelente, como de costume!
ResponderExcluirAbraços,